comecei a escrever este texto com a palavra “sonhei” e, na verdade, parece algo do campo dos sonhos mesmo.
o fato é que, outro dia, meu irmão me enviou uma caixa com alguns objetos pequenos dos meus pais que ainda restavam. não me lembro de ele ter dito que enviaria naquela semana e nem do que enviaria. a caixa grande chegou de surpresa, e quando a abri, dentro dela, vi vislumbres da beleza dos objetos que eu aguardava saudosa, tentando reconhecer a vivacidade na presença deles em mim e na memória. junto, vieram outras coisas que não sei exatamente por que ele enviou, mas acredito que tenha sido uma forma de deixar a decisão para mim de manter, ou não, o que eu desejasse.
um dos objetos não esperados era uma câmera analógica de minha mãe. Impecável, como era de se esperar de tudo que vinha de minha mãe, com um filme dentro, e o marcador de fotos batidas mostrava o número 31. a imaginação me levou a diversas aberturas da memória e às histórias que vivi junto dos meus pais e daquela câmera. talvez eu tenha inventado aquelas lembranças, mas foi bonito imaginar.
no mesmo dia, levei a câmera ao laboratório de fotos para assegurar que o filme sairia, pelo menos, inteiro. um lado meu sabia que nada poderia sair, afinal, essa é uma das bonitezas do filme analógico.
muito ou nada.
e veio o muito. todas as 31 fotos saíram, com a data de 2008. era uma viagem dos meus pais para o MS, mais uma de pescaria. nas fotos, minha mãe, meu pai, minha avó, e um tanto de gente que já não está mais aqui como eles e outras tantas.
o choro veio com tanta intensidade que não sei se consegui realmente ver todas as fotos, pois os olhinhos ficam marejados só de lembrar.
minha mãe me deu minha primeira câmera analógica, e eu tinha esquecido disso. ela, que sempre estava atrás das câmeras, buscava guardar cada instante. sigo aqui, tentando não esquecer.
em 2016 minha mãe encantou-se, esse ano foi a vez de meu pai. as reverberações dessas passagens ecoam de formas inesperadas e vem, às vezes, como vendaval, sem aviso prévio. como no dia nublado de hoje.
veio no avistar de um casal de velhinhos, que tive o ímpeto de sacar uma foto, no metrô. num piscar, me senti um pouco como uma visitante de um sonho. tudo embaralhou, ficou sobreposto e cheio de mistério, e junto um movimento urgente de vasculhar a imaginação.
por um instante, num mundo irreal, vislumbrei meus pais velhinhos, assim, andarilhantes, povoando um lugar não lugar.
e, num outro piscar, tudo voltou para o último sopro do semblante da minha lembrança dos dois de costas no abraço, que até aliviou, mas não fez passar o vendaval.
foi uma preciosidade da imaginação em vasculhar tudo aquilo que poderia ter sido. cada sopro, uma despedida, uma invenção.
escritos de agosto de 2023.
muitas vezes penso sobre a decisão do lugar de estar e a melhor forma de produzir/ser produtiva a partir de um lugar com o qual não estou familiarizada. nem sempre é fácil se adaptar, embora meu corpo entenda as mudanças e necessidades de escutas não visíveis de tanto movimento.
os acontecimentos dos locais de escuta estão em conceitos trazidos à tona por meio da escrita intransigente e, nesse momento, de leitura, por meio de uma voz gestual que forneceu mais uma coordenada para a noção de alma.
a história contada na travessia de um corpo-memória, de um gesto presente nas mãos, diz mais do que as próprias palavras faladas. é a ressonância de um lugar em que os elementos gestuais se fazem por sinestesia e facilita a linguagem, do lado de cá, desse corpo que tanto sabe e tanto recorda-reconstrói de memória.
Henri Focillon diz que os gestos multiplicam o saber: “a ação da mão define o oco do espaço e o pleno das coisas que o ocupam. superfície, volume, densidade e peso não são fenômenos ópticos. foi entre os dedos, no oco da palma das mãos, que o homem primeiro os conheceu. o espaço, ele o mede não com o olhar, mas com a mão e com o passo. o tato preenche a natureza de forças misteriosas. sem ele, a natureza seria semelhante às deliciosas paisagens da câmara escura, diáfanas, planas e quiméricas”.
portanto, acredito que olhar para o gesto da mão ansiosa desconhecida, e, contar o tempo, torna-se uma perseguição de outros saberes, me torno cúmplice, participo e observo formas de enfrentar o mundo que nos cerca e as relações que são tecidas para além do que é falado e é sentido aqui dentro.
escritos de novembro de 2022.